Na tarde de 4 de Outubro é organizada uma grande
manifestação pelos dirigentes republicanos locais, pelos socialistas
revolucionários e pelos anarquistas.
Nessa manifestação a cidade regurgita de força e de
determinação. Tem as ruas percorridas
por milhares de pessoas. A manifestação encaminha-se para a câmara municipal,
onde funcionava a esquadra de polícia. Aí exige que seja hasteada a bandeira
republicana.
Estamos, repete-se, em 4 de Outubro, e a cidade, num
pressentimento de ruptura, cumpre antecipadamente um roteiro de revolução.
Perante a recusa da polícia em desfraldar a bandeira da República, e após
alguns tiros disparados do interior da esquadra, a câmara será incendiada. A
monarquia ardia em Setúbal sem garbo e sem glória, acossada por manifestantes
que, numa espécie de auto de fé revolucionário, impunham na rua um novo regime.
A bandeira monárquica jazia agora imprestável e em seu lugar subia a da
república. A troca de poderes tinha acontecido.
A noite setubalense do 4 de Outubro será uma noite
justiceira. Após o incêndio do edifício camarário, havia que acertar outras
contas.
A cidade republicana e popular, a cidade sindicalista e
revolucionária, que calcorreava as ruas e praças setubalenses, não esquecia nem
perdoava àqueles que desde sempre tinham sido os aliados incondicionais da
monarquia.
Essa incondicionalidade havia-se colado à pele da Igreja
Católica. A Igreja significava para estes republicanos aquilo que de pior se
continha na monarquia. A Igreja significava exactamente, o obscurantismo, o
poder da realeza legitimado pela bênção e pela cruz e pelo conservadorismo.
Os revolucionários do 4 de Outubro conheciam bem as ordens
religiosas que existiam em Setúbal, a sua morada, a sua existência física, o
que diziam no seus sermões.
A Igreja do Coração de Jesus, ocupada pelos Jesuítas, será
alvo do primeiro assalto; de seguida, o convento de Brancanes, habitado por
Franciscanos, conhecerá igual destino: ambas as instituições vão ser saqueadas.
O Convento de Brancanes acabará também por ser incendiado.
A Igreja nunca perdoará estes actos. A descrição de Luís
Silveira, jornalista, feita em tom de reportagem, muitos anos depois, prova que
a Igreja Católica e os seus seguidores, sentiram o fogo ateado naqueles
incêndios como um golpe que o tempo não sarou.
“No largo fronteiro, uma fogueira; e arremessadas sobre ela,
numa fúria de destruição inconcebível, imagens várias que guarneciam os altares
da igreja, alimentavam essa fogueira infernal , à volta da qual a turba
desconhecida, de pé-descalço, desprezível, ululava em gritos de canibalesca
selvajaria!” (Silveira, 1939)
É nossa convicção que estas acções não foram irreflectidas
nem obra do acaso. Elas reflectem em grau de radicalização e influência
política das correntes sindicalistas revolucionárias e anarquistas, espelhando
ainda a ligação destas correntes a sectores do republicanismo setubalense.
No dia 5 de Outubro, irão ocorrer ainda outros assaltos a
Brancanes, numa lógica de continuação do saque sobre o que havia sobrado. O Administrador
do Concelho, Luciano de Carvalho, logo no dia 6 de Outubro pedirá ao comandante
do Regimento de Infantaria protecção para o edifício do Convento.
“Continuando a ser invadido pelos populares o edifício de
Brancannes, e sendo impotente a polícia de que actualmente disponho para coibir
tal abuso, vimos por isso rogar a VExª se digne providenciar para que uma força
de cavalaria para aí siga imediatamente a fim de proibir que o povo ali entre.”
Havia por estes dias como que um vácuo de poder na cidade.
A polícia tinha fugido na noite de 4 de Outubro tendo
ficando completamente desarticulada, como o próprio Administrador do Concelho
reconhece no ofício enviado ao comandante do quartel.
Por isso mesmo, uma das primeiras medidas, ou mesmo a
primeira medida, que terá sido tomada pelo representante do novo governo
revolucionário em Setúbal foi a criação de “Comissões Paroquiais” encarregadas
da manutenção da “ordem pública”. Vê-se, no entanto, que o Administrador do
Concelho não confiava completamente na eficácia destes comités revolucionários.
Se neles tivesse confiado, não teria mobilizado de imediato o exército, mesmo
sabendo que o comandante do quartel do 11 não teria aderido de imediato à
revolução.
De resto, esta mobilização da “força aramada” não se limitou
a defender Brancannes. Foi também utilizada para patrulhar as quatro freguesias
urbanas onde a possibilidade de existirem conflitos era maior e, de igual modo,
para evitar novos assaltos a instituições religiosas, como se percebe por este
novo ofício endereçado para o comandante de infantaria no dia 8 de Outubro: “Rogo
a V. Exª que uma força de 9 soldados compareça pelas 8 horas da noite no
extinto convento de S. Francisco para o guardar”.
Não é necessário concordar com a asserção de Engels de que a
“violência é a parteira da história” para reconhecer que Setúbal foi das
cidades do país em que o parto republicano foi mais violento.
Em mais nenhuma outra cidade do país temos uma situação
semelhante a esta, com destruição pelo fogo dos símbolos do poder político e do
poder religioso…
in ALHO, Alberico Afonso Costa, Do ensaio do poder à guerra social permanente e de alta intensidade: Setúbal republicana: a greve geral da indústria conserveira de 1922. Disponível em: http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/4855/1/Do_ensaio_do_poder_a_guerra_social---.pdf. [consultado em: 30 de Novembro de 2013]
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