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domingo, 1 de dezembro de 2013

4 de Outubro de 1910



Na tarde de 4 de Outubro é organizada uma grande manifestação pelos dirigentes republicanos locais, pelos socialistas revolucionários e pelos anarquistas.

Nessa manifestação a cidade regurgita de força e de determinação. Tem as  ruas percorridas por milhares de pessoas. A manifestação encaminha-se para a câmara municipal, onde funcionava a esquadra de polícia. Aí exige que seja hasteada a bandeira republicana.

Estamos, repete-se, em 4 de Outubro, e a cidade, num pressentimento de ruptura, cumpre antecipadamente um roteiro de revolução. Perante a recusa da polícia em desfraldar a bandeira da República, e após alguns tiros disparados do interior da esquadra, a câmara será incendiada. A monarquia ardia em Setúbal sem garbo e sem glória, acossada por manifestantes que, numa espécie de auto de fé revolucionário, impunham na rua um novo regime. A bandeira monárquica jazia agora imprestável e em seu lugar subia a da república. A troca de poderes tinha acontecido.

A noite setubalense do 4 de Outubro será uma noite justiceira. Após o incêndio do edifício camarário, havia que acertar outras contas.

A cidade republicana e popular, a cidade sindicalista e revolucionária, que calcorreava as ruas e praças setubalenses, não esquecia nem perdoava àqueles que desde sempre tinham sido os aliados incondicionais da monarquia.

Essa incondicionalidade havia-se colado à pele da Igreja Católica. A Igreja significava para estes republicanos aquilo que de pior se continha na monarquia. A Igreja significava exactamente, o obscurantismo, o poder da realeza legitimado pela bênção e pela cruz e pelo conservadorismo.

Os revolucionários do 4 de Outubro conheciam bem as ordens religiosas que existiam em Setúbal, a sua morada, a sua existência física, o que diziam no seus sermões.

A Igreja do Coração de Jesus, ocupada pelos Jesuítas, será alvo do primeiro assalto; de seguida, o convento de Brancanes, habitado por Franciscanos, conhecerá igual destino: ambas as instituições vão ser saqueadas. O Convento de Brancanes acabará também por ser incendiado.

A Igreja nunca perdoará estes actos. A descrição de Luís Silveira, jornalista, feita em tom de reportagem, muitos anos depois, prova que a Igreja Católica e os seus seguidores, sentiram o fogo ateado naqueles incêndios como um golpe que o tempo não sarou.

“No largo fronteiro, uma fogueira; e arremessadas sobre ela, numa fúria de destruição inconcebível, imagens várias que guarneciam os altares da igreja, alimentavam essa fogueira infernal , à volta da qual a turba desconhecida, de pé-descalço, desprezível, ululava em gritos de canibalesca selvajaria!” (Silveira, 1939)
É nossa convicção que estas acções não foram irreflectidas nem obra do acaso. Elas reflectem em grau de radicalização e influência política das correntes sindicalistas revolucionárias e anarquistas, espelhando ainda a ligação destas correntes a sectores do republicanismo setubalense.

No dia 5 de Outubro, irão ocorrer ainda outros assaltos a Brancanes, numa lógica de continuação do saque sobre o que havia sobrado. O Administrador do Concelho, Luciano de Carvalho, logo no dia 6 de Outubro pedirá ao comandante do Regimento de Infantaria protecção para o edifício do Convento.

“Continuando a ser invadido pelos populares o edifício de Brancannes, e sendo impotente a polícia de que actualmente disponho para coibir tal abuso, vimos por isso rogar a VExª se digne providenciar para que uma força de cavalaria para aí siga imediatamente a fim de proibir que o povo ali entre.”

Havia por estes dias como que um vácuo de poder na cidade.

A polícia tinha fugido na noite de 4 de Outubro tendo ficando completamente desarticulada, como o próprio Administrador do Concelho reconhece no ofício enviado ao comandante do quartel.

Por isso mesmo, uma das primeiras medidas, ou mesmo a primeira medida, que terá sido tomada pelo representante do novo governo revolucionário em Setúbal foi a criação de “Comissões Paroquiais” encarregadas da manutenção da “ordem pública”. Vê-se, no entanto, que o Administrador do Concelho não confiava completamente na eficácia destes comités revolucionários. Se neles tivesse confiado, não teria mobilizado de imediato o exército, mesmo sabendo que o comandante do quartel do 11 não teria aderido de imediato à revolução.

De resto, esta mobilização da “força aramada” não se limitou a defender Brancannes. Foi também utilizada para patrulhar as quatro freguesias urbanas onde a possibilidade de existirem conflitos era maior e, de igual modo, para evitar novos assaltos a instituições religiosas, como se percebe por este novo ofício endereçado para o comandante de infantaria no dia 8 de Outubro: “Rogo a V. Exª que uma força de 9 soldados compareça pelas 8 horas da noite no extinto convento de S. Francisco para o guardar”.

Não é necessário concordar com a asserção de Engels de que a “violência é a parteira da história” para reconhecer que Setúbal foi das cidades do país em que o parto republicano foi mais violento.


Em mais nenhuma outra cidade do país temos uma situação semelhante a esta, com destruição pelo fogo dos símbolos do poder político e do poder religioso…

in ALHO, Alberico Afonso Costa, Do ensaio do poder à guerra social permanente e de alta intensidade: Setúbal republicana: a greve geral da indústria conserveira de 1922. Disponível em: http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/4855/1/Do_ensaio_do_poder_a_guerra_social---.pdf. [consultado em: 30 de Novembro de 2013]

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