.

.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Lendas e Rendas

Na imaginação da nossa gente do povo, a história das rendas começa sempre numa história de amor.
Eu conto.
Era uma vez uma linda e esbelta rapariga. Esforçado e galanteador era o moço que dela se enamorara. Pobres, um e outro, muito se amarguravam e consumiam na impossibilidade de, por carência de enxoval, realizarem a aspiração comum: o matrimónio.
Noite velha, fechada e negra, sem uma estrela que pudesse aquecer e iluminar a mais vaga esperança dos infelizes, a pobre apaixonada, em casa, torturada pela desventura, com voz triste e magoada, lamentava, baixinho, a sua desdita. De seus olhos corriam lágrimas sem conto e sem fim. Com o coração abrasado em fé, murmurou uma prece e adormeceu sobre a costura.
No bico da candeia, a luz mortiça extinguira-se, há muito, quando um clarão, doce e esplendoroso, a envolveu subitamente.
Nossa Senhora, que dela se condoera, baixara à terra. E, debruçada sobre a infortunada, ali mesmo lhe afagara os dedos, que logo começaram a tecer com as linhas da meada, que lhe pendia do pescoço, a mais fina e delicada teia. Era branca e imaculada como o manto da Virgem e tinha a transparência da luz doce e esplendorosa que a envolvera.
O Sol já ia alto. A/ pobre apaixonada acordou. Ao ver a renda, os olhos riram-se, e, num assomo de felicidade e de gratidão, afloraram-lhe, nos lábios, louvores a Maria.
De suas miraculadas mãos, não mais deixaram de cair rendas, que, suaves como uma carícia, eram o enleio e o mago encanto dos olhares das noivas da redondeza.
Meses andados, em casa da primeira rendilheira, acumulavam-se as encomendas dos finos e cobiçados artefactos femininos.
A fama da mágica da linha e da luz correra célere.
Assim, pôde a jovem enamorada, enriquecendo e alindando o enxoval das mais afortunadas, amealhar alguns proventos para o seu.
Um dia chorou de alegria. Acabara de realizar o seu sonho de amor.
Depois, pelos séculos fora, até aos nossos dias, quantos milagres de amor e de felicidade, não continuaram a operar as rendas saídas das mãos das pobres rendilheiras! Que o digam as mulheres portuguesas, avós, mães, filhas e noivas, de quem os maravilhosos artefactos têm sido testemunhas, mudas e silenciosas, dos seus mais fervorosos e legítimos anseios de amor e de felicidade!
O milagre das rendas, na tradição popular, operou-se por intermédio de Virgem Maria, porque Deus abençoa o amor, os pobres e os humildes, como pobres e humildes são as rendilheiras de Portugal.
Há que séculos isto foi! Ao certo, ninguém o sabe que a lenda não o diz...
A alma da nossa boa gente do povo, de imaginação fecunda e ardente, não raro envolve na fantasia da lenda, quase sempre, com ressaibos de amor e de poesia, as cousas e os fenómenos, que lhe são familiares, mas que fogem à sua compreensão ingénua, pura e simples.
Esta é a lenda. Outra é a história da origem das rendas. Mas esta ninguém a sabe...
Mimosos e diáfanos enfeites das mais aprimoradas galas, todas feitas de luz e de alvas linhas, enlevo de ricos e de pobres, que deslumbram na solenidade dos templos, na opulência dos salões, como na humildade das choupanas, que escutam e guardam segredos e promessas de amor, as rendas tecidas pelas mulheres portuguesas mais parecem de inspiração divina, como quer a lenda, do que de invenção humana.
A lenda, se não é a irmã mais velha da história, é para o povo, que a criou, /a única fonte de informação do passado. 
Fantasia, sim! Mas nem por isso deixa de acalmar os anseios, sempre insatisfeitos, de desvendar os mistérios do passado, como os presságios dos augures da velha Roma acalmavam as incertezas do futuro.
Para as velhas rendilheiras de Setúbal, artistas anónimas, que, em tempos idos, com o seu constante labor, tanto honraram e dignificaram o nome da Rainha do Sado, as rendas, se não eram de inspiração divina, tiveram origem na saudade, na fidelidade do amor e nos sortilégios do mar.
Encanecidas velhinhas de tempos antigos, incansáveis narradoras de contos tradicionais, desses contos de autor anónimo, transmitidos, oralmente, não se sabe desde quando, de geração para geração, contavam que numa povoação da beira-mar, que elas não sabiam dizer qual era, há muitos e muitos anos, tantos que deles se perdera o conto, as mulheres e as noivas dos pescadores, quando mortificadas pela saudade dos entes queridos, que andavam, lá longe, em luta com o mar revolto, acorriam à praia e ali ficavam horas e horas seguidas.
E, muito convencidas da autenticidade da narrativa, logo acrescentavam que o mar infindo, misterioso e atrevido, se entretinha a acariciá-las e que, meigamente, com mil promessas de felicidades e venturas lhes beijava os pés que ia envolvendo de leves e delicadas rendas de espuma, que se esvaíam, como o fumo, sem que elas as pudessem apanhar. Novas carícias e novas enganadoras promessas de amor seguiam-se, sem parar, umas após outras.
O mar traiçoeiro era verde e azul, com reflexos prateados, e as rendas fluidas e brancas, fluidas como a inconstância do falso enamorado, brancas como a candura das mulheres simples e ingénuas. O mar acariciava e beijava estas, enquanto', lá longe, na crista das ondas, encapelado e bravio, lhes açoitava, impiedosamente, os maridos e os noivos.
Um dia, as mulheres e as noivas dos pescadores, sempre fiéis ao amor dos homens, voltaram as costas ao mar...
Não se sabe, que as boas velhinhas não o diziam, se por este ser mais atrevido nas suas falsas promessas, se por vergastar mais raivosamente os homens, que, sempre valentes e audazes, o acometiam em luta porfiada e heróica...
Desde então, deixaram de esperar os homens sentadas na areia fulva da praia. Ficaram, em casa, a tecer, durante as longas horas de espera, as rendas, que, com o mar, tinham aprendido a fazer e que tanto as haviam enfeitiçado...
A mulher do piscatório bairro setubalense de Troino, ainda hoje — e já lá vão tantos e tantos anos! — vive de costas viradas para o mar. Ao contrário da poveira, não mete o ombro ao barco, não põe a giga na cabeça, não vende, nem apregoa o peixe, não puxa, não lava, nem conserta as redes. Em suas veias borbulha sangue algarvio, como nas da mulher do bairro das Fontainhas corre sangue ovarino. Dois tipos diferentes de mulheres de pescador, acantoados em dois bairros diferentes da cidade! Umas e outras, em dias negros e trágicos, ouvem, lá longe, o bramir medonho e ameaçador da tempestade, que lhes retalha o coração e lhes faz arquejar o peito. Se bendizem o mar é porque este lhes dá o peixe, o pão de cada dia, mas não morrem de amores por ele. Não o figuravam nas suas rendas tão pouco!
Agora, ao canto da chaminé, nas noites de invernia, ou à porta da rua, ao cair das tardes calmosas, as simpáticas velhinhas setubalenses já não contam aos mais novinhos da família, como a elas contaram, em tempos passados, suas avós, os velhos contos tradicionais; já não falam dos sortilégios do mar, de fadas de mágicas varinhas de condão, de mouras encantadas e mortinhas de amores, toucando-se com pentes de prata à beira dos caminhos, ou junto de fontes de água cristalina e cantante.
Manifestações da imaginação fecunda, ardente e ingénua da gente do povo, que vão desaparecendo, sucumbindo, sob o rodar imparável do tempo, irremediavelmente perdidas para sempre! A sua conservação em nada molestaria os mais legítimos anseios de progresso da nossa geração, da geração que as esqueceu, que as desprezou, que as trocou, não se sabe, ao certo, por quê, talvez pelas aventuras folhetinescas sem interesse nacional, sem função educativa.
De bom grado se cede o lugar a quem investigue, se souber e tiver elementos seguros e dignos de crédito, a origem histórica das rendas. Decidir se foram, ou não, na mais remota antiguidade, os Egípcios, os Hebreus, os Fenícios, os Gregos ou os Romanos os primeiros a usar a agulha na indústria artística de tão finos e delicados artefactos é tarefa que aqui se não pretende levar a cabo. Tanto seria contestar a lenda e profanar o que há de mais respeitável na alma da nossa boa gente — a candura, a ingenuidade e a simplicidade. Seria atraiçoar esta na sua crença, que é, afinal, a causa da sua verdadeira felicidade.
Conservemo-nos, pois, fora da realidade histórica da origem das rendas.
Onde apenas se pretende falar das rendas de Setúbal, não interessa dizer a origem das famosas gargantilhas rendadas de Catarina ou de Maria de Médicis e, menos ainda, a dos punhos de renda — outro grande luxo da época de quinhentos! — que o huguenote, depois católico, Henrique IV de França pagou por alto preço para juntar ao seu enxoval de uma escassa dúzia de camisas velhas e de quatro lenços...
O fim visado é outro.
Seriam de Veneza, de Malines ou de Bruges as rendas que, já no século XVI, deslumbraram a corte de Carlos V, como o seria o célebre «bonnet» de fios de ouro e de prata do poderoso imperador, e que o Museu de Cluny guarda ciosamente.
Seriam de Alençon, de Valenciennes, de Chantilly ou de Argentan as famosas rendas que Carlos, o Temerário, perdeu na batalha de Granson, ou as não menos famosas rendas que estontearam a época da marquesa de Pompadour e da condessa Du Barry, favoritas de Luís XV, ou ainda as que este monarca pagou por fabuloso preço para o enxoval do noivado da filha mais velha, verdadeiros deslumbramentos da exigente corte de Versalhes.
Seriam de Veneza as riquíssimas rendas do estonteante vestido de casamento da marquesa de Borgogne.
Eram, sem dúvida, de Alençon os tão falados punhos de renda, que figuraram na célebre exposição ali realizada em 1862.
Se tão afamadas rendas não tinham impregnado o cicio das rezas das nossas rendilheiras, se não arfaram sobre o peito das mães e das noivas de Portugal, se asseios tão inofensivos e, a um tempo, tão perigosos como um sorriso feminino doce e subtil, não foram o grande e irresistível adorno de mulheres portuguesas, que importa falar aqui de todos esses artefactos usados, com mais ou menos futilidade, com mais ou menos perfídia, lá fora, em terras estranhas?
Não são grandezas, nem mimos da nossa terra

Entremeio de desenho e manufactura populares, para dobra de lençol ou toalha do rosto.
Composição do fundo: ourela de dois torcidos e ponto virgem, ponto inteiro, ou paninho, e ponto de palhinha.

Entremeio de desenho e manufactura populares, para dobra de lençol
Composição de fundo: ourela de torcidos, ponto virgem, ponto inteiro ou paninho, e ponto carrapato, ou das ovais.

Entremeio de desenho e manufactura populares, para roupa de uso doméstico.
Composição de fundo: ourela de dois torcidos, ponto virgem, ponto de varreiras fechados e ponto de aranha.
Entremeio de desenho e manufactura populares, para dobra de lençol ou pano de tabuleiro.
Composição do fundo: ourela de paninho e torcidos, ponto de palinha e ponto inteiro ou paninho.
in COSTA, José Marques da, Rendas de Setúbal, Edição da Junta Distrital de Setúbal, 1962.
http://setubaldigital.blogspot.pt/2014/03/rendas-de-setubal.html

0 comentários:

Enviar um comentário