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sexta-feira, 18 de abril de 2014

Breves Apontamentos para a História da Rendaria

Com visos de verdade, historiadores registaram e poetas cantaram, desde a mais alta antiguidade, a famosa lenda, que, há muito, corre mundo, da teia tecida de dia e logo desfeita de noite, pela fiel e formosa esposa Penélope para, em doce e ledo engano, manter a distância toda uma corte de apaixonados, em porfiada disputa para a sucessão ao facundo e astuto Ulisses no tálamo conjugal.
Já a Bíblia nos fala de um «véu de cor de jacinto, de púrpura e de escarlate tinta duas vezes e de linho fino e retorcido, com lavores de bordados, e tecido com formosa variedade», cuja urdidura fora ordenada pelo Senhor a Moisés e destinado ao Tabernáculo.
Que o uso de malhas de fio era velha costumeira egípcia e que os patrícios romanos adornavam suas togas com finos e transparentes fios habilmente entretecidos parecem verdades históricas averiguadas.
São escassas as notícias da rendaria, anteriores ao alvorecer da Idade Média.
Velhas crónicas falam-nos de rendas de agulha, entretecidas, com fios de ouro e de prata, a partir do século XII, pelos Judeus de Toledo.
O uso de rendas de linha generalizou-se na Europa, na segunda metade do século XIV. Do século de quinhentos chegaram, até nós, notícias completas sobre a manufactura de rendas em França, Itália, Alemanha, Espanha e Inglaterra. 
A manufactura da renda de bilros parece ter aparecido, no continente europeu, pela primeira vez, em Veneza, no século XVI.
Valenciennes, Alençon, Lille, Paris, Dieppe, Arras, Sedan, Havre, Aurillac, Lyon, Charleville, Dijon, etc., em França, e Malines, Bruxelas, Antuérpia, Bruges, Gand e Liege, na Bélgica, foram no século XVII os mais importantes centros manufactureiros de rendas, como o foram, em Itália, Veneza, Milão, Génova e Ragusa. Da mesma época são dignas de citação as rendas manufacturadas em Londres, Buckinghamshire, Bedfordshire, Hutfordshire, Devon e Dorset, em Inglaterra, e em Ausbey, Dresde, Berlim e Hamburgo, na Alemanha, onde a indústria rendeira foi introduzida na segunda metade do século XVI (1561).
Da mesma época são, igualmente, notáveis as rendas manufacturadas na Dinamarca, na Boémia, na Hungria e na Rússia, onde a indústria rendeira foi introduzida por Pedro, o Grande.
É, ainda no século XVII, que a manufactura dos finos artefactos mais prospera em Espanha, especialmente, em Manzanares, Almagro, Granátula, Camarinhas, Zamora e em várias povoações da costa da Catalunha, depois de se terem afamado nos séculos XIV e XV as rendas de agulha de Barcelona, de Palma de Maiorca e de Toledo. As rendas espanholas de seda negra, muito usadas na corte de Inglaterra, no século XVI, ganharam fama.
No século XVII, do uso das rendas passou-se ao abuso.
Os edictos de Henrique IV, de Luís XIII e de Luís XIV, especialmente o do cardeal Mazarino, de 1660, moderaram o seu emprego. A Revolução Francesa vibrou profundo golpe na manufactura das rendas, que só voltou a conhecer o seu antigo esplendor com o Directório. Este esplendor manteve-se até à divulgação da renda produzida mecanicamente, especialmente a de Nottingham, de Mansfield e de Ausbourne.
A manufactura das rendas continua próspera, ainda hoje, em França, Inglaterra, Bélgica e vizinha Espanha, especialmente em Barcelona e outros centros do país vizinho.
Não é fácil determinar, por carência de documentação escrita, a época do aparecimento, em Portugal, da manufactura das rendas. Dizem uns que esta é de origem mourisca, o que, de certo modo, parece confirmado pela velha costumeira de algumas rendilheiras de Setúbal e de Peniche se sentarem, no chão, durante o trabalho, com as pernas encruzadas, à maneira dos Árabes. Outros atribuem-lhe origem nórdica.
Não menos difícil é a determinação, em bases seguras, da origem do vocábulo português «renda», que, também aqui, as mais autorizadas opiniões são divergentes. Com poucas probabilidades de acerto, Cândido de Figueiredo (1), aceitou a hipótese de provir do latino «retina», diminutivo de «rete» (rede). José Pedro Machado (2) diz ser, certamente, aparentado com o castelhano e catalão «randa» e relacionado, como parece provável, com o provençal «randar», de origem incerta, talvez céltica. Ainda hoje, «randa» significa, em Castelhano, «encaje grueso y de nudos apretados, labrado con aguja, o tejido, que suele ponerse por adorno en las ropas».
Embora alguém tenha afirmado, e muitos tenham repetido, que a palavra «renda» só apareceu, em Portugal, em 1560, no reinado de D. Sebastião, a verdade é que se encontra em documentos medievais já da primeira década do século XIII. Em «Costumes e Foros de Castel-Rodrigo» (Lib. III, cap. XXXIX — «De los lidiadores»), do ano de 1209 (3), lê-se: «... E lidiadores de los coutos non ixcan nin prendan outras armas sino las suas ó de seu conpaneyro con que lidiare ó terra ó pedra, e non tome uestido de ningun ome nin pan nin corte lança que touer en seu poder nin tallen rendas nin cabeçadas nin maten cauallo de seu conpaneyro. E se o matare ou tallar rendas ou cabeçadas iure que no lo mato nin tallo rendas de seu grado e tome outro como le mandaren hos alkaldes».
Qualquer que tenha sido a origem da nossa rendaria, nórdica ou oriental, o problema da determinação da época do seu aparecimento está fora dos lindes deste trabalho. Rios de tinta não o esclareceriam. A discussão só não seria porfiada, entre os campos contendores, por carência de elementos seguros e dignos de crédito.
O uso das rendas, em Portugal, parece ter-se generalizado e caído no abuso, durante o Quinhentismo, por tal forma que, no reinado de D. João III, pelo edicto de 1535, foi proibida a aplicação de redes» e «desfiados» no bragal. Mercê de vários casamentos de membros da família real portuguesa com princesas de Espanha, vieram para a corte de Portugal a língua, usos e costumes do país vizinho e, certamente, também, o abuso das rendas, depois generalizado nos adornos masculinos e femininos, então muito em voga lá fora.
Antes do malogrado D. Sebastião, já sua mãe Joana de Áustria, filha do poderoso Carlos V, e esposa do nosso príncipe D. João, usava as célebres gargantilhas de renda. Com elas, nos aparece figurada em dois quadros, um guardado no Museu do Prado, em Madrid, outro exposto no Real Museu de Bruxelas. De D. Sebastião, existem várias gravuras nas quais o jovem rei ostenta o incómodo adorno.
Da pragmática de 1610, de Filipe II, parece poder concluir-se que o uso das rendas, entre nós, apesar da proibição imposta por D. João III, continuou a generalizar-se por tal forma que foi necessário proibi-lo mais uma vez.
Não menos difícil do que determinar a época do aparecimento das primeiras rendas em Portugal, é a determinação da data do aparecimento, entre nós, das primeiras rendilheiras profissionais. Parece, porém, poder afirmar-se que elas já existiam no primeiro quartel do século XVII. Duarte Gomes Solis, judeu português, autor de «Discursos sobre los Comércios de las dos índios donde se Tratan Matérias Importantes de Estado e Guerra», já em 1622, preconizava que se cuidasse do desenvolvimento da indústria de certos artefactos, entre eles o das rendas, meias e outros lavores femininos que podiam dar trabalho rendoso às mulheres e que se proibisse a importação destes artigos. Assim o entendeu, mais tarde, o vedor da Fazenda, no reinado de D. Pedro II, D. Luís de Meneses, conde de Ericeira, que, para dar satisfação a queixas apresentadas, em cortes, contra o excessivo luxo, e como bom mercantilista que era à maneira de Colbert, regulamentou, pelas pragmáticas de 1677, de 1696 e de 1698, o uso de certos adornos, e, pela primeira proibiu o uso de panos, excepto os de grã, de voltas de renda, cintos, talins, boldriés e chapéus, que não fossem de fabrico português, a fim de desenvolver as indústrias nacionais e de evitar a saída de ouro para o estrangeiro, o que confirma a existência da manufactura rendeira no País, na segunda metade do século XVII, quando não antes.
Em 1749, sopraram ventos desfavoráveis para as rendilheiras portuguesas. A pragmática de D. João V, facilitando o uso das rendas flamengas
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e limitando o das nacionais, ameaçou de morte a nossa rendaria, o que não passou sem os mais vivos protestos das feitoreiras do Norte, especialmente das de Vila do Conde, que, por intermédio de uma emissária, eleita em agitado comício, obtiveram do magnânimo rei, por alvará, autorização para o livre emprego das rendas nacionais no adorno de certas peças de uso doméstico, que não nas de uso pessoal. Só no reinado seguinte se torna livre a aplicação de rendas portuguesas na roupa branca de uso pessoal, embora se regulamente a sua entrada em Lisboa.
No princípio do século passado, novos ventos voltaram a soprar contra as nossas rendilheiras. O tratado de 19 de Março de 1804, imposto a Portugal, pelo despótico Napoleão, estabelece que fique livre a importação de rendas e de outros artefactos franceses.
Na última metade do século passado, tenta-se desenvolver a rendaria nacional. D. Maria II, D. Luís, D. Maria Pia, D. Carlos e D. Amélia em Portugal, como, antes, em França, Luís XIV, Luís XV, Luís XVI, Maria Antonieta e Napoleão Bonaparte, tentam desenvolver e aperfeiçoar a indústria rendeira. Dos resultados obtidos, na melhoria do produto, que não na intensificação da produção, falam as medalhas de ouro, da Exposição de Paris, de 1889, da Exposição Universal de Anvers, de 1894, da, também universal de Paris, de 1900, e o «grand-prix» da Exposição de S. Luís, obtidas pelas rendas portuguesas.
A reforma do Ensino Técnico Profissional, de Fontes Pereira de Melo (decreto de 30 de Dezembro de 1852), ampliada, primeiro, por João Crisóstomo de Abreu e Sousa (decreto de20 de Dezembro de 1864), e, depois, por António Augusto de Aguiar (decretos de 24 de Setembro de 1883, 3 de Janeiro de 1884 e 11 de Outubro do mesmo ano), conduzira à reorganização do mesmo ensino levada a cabo por Emídio Navarro (decreto de 30 de Dezembro de 1886). Além da criação das escolas industriais de Lisboa (Alcântara), Braga, Porto, Coimbra e Peniche, esta com o nome de D. Maria Pia e mais tarde chamada Escola Industrial de Rendeiras de Josefa de Óbidos, foram fundadas as escolas de desenho industrial de Setúbal, com o nome de Escola Industrial de Desenho Princesa D. Amélia, Viana do Castelo, Braga, Vila Real, Bragança, Matosinhos, Figueira da Foz, Leiria, Fundão e Faro. Foram criados cursos industriais elementares para operários de diferentes artes e ofícios, cursos preparatórios de acesso a cursos industriais especiais, ou ao curso superior de comércio.
A Escola de Setúbal abriu as suas portas em 1 de Outubro de 1888, um ano depois da inauguração da Escola de Peniche, em Setembro de 1887, que foi dirigida por D. Maria Augusta Bordalo Pinheiro, primeiro, e, depois, por D. Etelvina da Assunção P. Guisado e D. Alice Paninho.
Novos e artísticos desenhos, melhoria da matéria-prima, pagamento de salários às alunas, que iam de 100 a 300 réis, comparticipação nos lucros dos artefactos vendidos e um ensino metódico e consciente traduziram-se na valorização do produto e na consequente valorização do trabalho da rendilheira.
Em Vila do Conde, a Escola de Rendeiras de Baltasar do Couto sob a direcção de Rui Vaz, filho do notável pintor setubalense João Vaz, um e outro mais tarde directores da Escola de Setúbal, o último também patrono desta, deu assinalado incremento à indústria rendeira.
 O Decreto n.º 18 420, publicado no «Diário do Governo» n.º 128, I série, de 4 de Junho de 1930, que reorganizou o Ensino Técnico Profissional, manteve as oficinas de rendeira nas Escotas de Setúbal, Peniche, Vila do Conde e Silves, que o Decreto n.º 20 420, de 21 de Outubro de 1931, igualmente manteve. Este último decreto criou o ensino do ofício de bordadora-rendeira nas Escolas de Machado de Castro e de Fonseca Benevides, de Lisboa, e na de Faria Guimarães, do Porto, ministrado em seis anos. Compreendia as disciplinas de Português, Geografia e História, Matemática, Francês, Desenho Geral, Desenho Profissional e Tecnologia, Desenho Ornamental, Estilos e Composição e Oficinas. Pelo mesmo Decreto n.º 20 420, o ensino do ofício de rendilheira era ministrado em quatro anos e compreendia as disciplinas de Português, Matemática, Desenho Geral, Desenho Ornamental, Fauna, Flora, Estilos e Oficinas. Nas Escolas de Peniche e Vila do Conde, o ensino do ofício de rendilheira era ministrado em oito anos e compreendia a disciplina de Desenho nos 5.°, 6.°, 7.° e 8.° Anos, e a oficina do primeiro até ao último ano.
A mulher e a filha do pescador setubalense, as nossas rendilheiras tradicionais, não corresponderam aos propósitos, a todos os títulos louváveis, da oficialização do ensino da manufactura das rendas. Surgiram, é certo, algumas, mas poucas, boas rendilheiras destras e conscientes no manejo dos bilros, que eram também «picadeiras» de elevado sentido artístico. Os resultados obtidos estão eloquentemente atestados, e não sofrerão contestação séria, nos trabalhos primorosamente desenhados e executados por antigas alunas da Escola de Setúbal. São verdadeiros tesouros da arte rendeira. Não receiam confronto com as mais afamadas rendas nacionais e estrangeiras.
Mais recentemente, o Decreto n.º 37 029, de 25 de Agosto de 1948, o mais notável esforço, até hoje realizado em Portugal, para a elevação e dignificação do Ensino Técnico Profissional e, concomitantemente, para a valorização da inteligência e do trabalho das novas gerações, que o mesmo é dizer da riqueza nacional, manteve, na nossa Escola Industrial e Comercial, a oficina anexa de rendeira.
Às renovadas e reforçadas tentativas da Direcção-Geral do Ensino Técnico Profissional para ressuscitar, na cidade do Sado, uma das nossas mais características actividades artesanais, mais uma vez, correspondeu, teimosamente, o desinteresse das netas das antigas rendilheiras de Setúbal.
A mulher do homem do mar, a nossa verdadeira rendilheira, continua desviada da sua ocupação tradicional e favorita, toda dada a ocupações fabris, se a sua constituição física a ajuda, que, se de compleição débil, permanece inactiva, embora a Escola se encontre, franca e gratuitamente, aberta à frequência de quantas aspirantes a rendilheira queiram continuar e transmitir às novas gerações a arte da rendaria setubalense.
Não se confunde retrocesso, que aqui se não defende, com portuguesismo; estagnação, que não se deseja, com incontidos anseios de opor uma forte barreira à ameaçadora desnacionalização dos nossos usos, dos nossos costumes, das nossas indústrias caseiras.
Para continuarmos a ser portugueses, é inadiável que à avassaladora e desenfreada onda de internacionalização, que tudo ameaça dominar e subverter, se oponha, sempre com redobrado ânimo, o ressurgimento e o revigoramento da nossa arte popular, dos traços mais característicos do temperamento do nosso povo.
Só os mais quentes e vibrantes aplausos são devidos à tarefa, já iniciada pelas entidades oficiais, do ressurgimento do bom, do puro, do genuíno artesanato nacional. Verdadeira cruzada, que a todos cumpre secundar quanto antes!
Que, com ele, ressurja também e se revigore o das afamadas rendas de Setúbal!
Setúbal, Julho de 1962.

(1); Cf. «Novo Dicionário da Língua Portuguesa», Vol. II, palavra «renda» — Lisboa, 1913.
(2) Cf. «Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa», Vol. II, palavra «renda» —• Lisboa, 1959.
(3) Cf. «Portugalise Monumenta Histórica — Leges», pág. 863.

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